Blog da Editora Dialética

Pesquisadora Renata Ribeiro publica livro que lança luz sobre a proteção dos direitos humanos no contexto da saúde mental

Doutoranda em Direito Público pela Université de Perpignan (França) em cotutela internacional com a Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha) no programa “Seguretat Humana i Dret Global”. Membro da European Society of International Law. Mestra em Direito pela UFMG, especialista em Direito Franco-Espanhol pela Universitat de Girona e em Direito Internacional pela UniBF. Graduada em Direito pela UFMA. Advogada inscrita na OAB/MA. Servidora pública do IFMA. | Foto: Arquivo Pessoal

 

Na obra, a autora examina de perto os desafios enfrentados pelas pessoas com transtornos mentais no contexto dos direitos humanos, destacando tanto as lacunas existentes quanto os progressos alcançados até o momento.

 

A cada 40 segundos, uma pessoa se suicida no mundo. A Organização Mundial de Saúde estima que a depressão será a doença mais incapacitante até o ano de 2030. Em meio a esses números alarmantes, a pandemia da Covid-19 exacerbou globalmente os casos de ansiedade e depressão em 25%, ressaltando a urgência de um olhar jurídico sobre a proteção à saúde mental.

Para discutir sobre essa temática fundamental de forma mais abrangente, a pesquisadora Renata Ribeiro lançou o livro “Droits de l’Homme et santé mentale: une analyse du système international de protection des personnes atteintes de troubles mentaux”. A obra propõe uma profunda análise do sistema internacional de proteção dos direitos humanos no contexto da saúde mental, questionando a existência e efetividade do direito à saúde mental sob a ótica jurídica.

Em entrevista à Editora Dialética, a autora aborda os desafios enfrentados pela legislação internacional e nacional frente à saúde mental e, dentre outros assuntos,  explica como o direito internacional pode contribuir para garantir efetivamente o direito à saúde mental para todos.

Além disso, Renata Ribeiro convida os leitores para uma reflexão profunda sobre a diversidade da sociedade e a importância de se promover a proteção dos direitos humanos, inclusive no âmbito da saúde mental.

 

Confira agora a entrevista de Renata Ribeiro à Editora Dialética

 

1 – Quais foram as principais motivações que te levaram a pesquisar a relação entre direitos humanos e saúde mental? 

R – Meu primeiro contato acadêmico com a Universidade Federal do Maranhão se desenvolveu na área da saúde, momento em que pude conhecer o contexto histórico da Reforma Sanitária, do Movimento da Luta Antimanicomial e todo o desenho jurídico de construção do SUS. 

No decorrer desta graduação em enfermagem, também pude adentrar o campo prático do ambiente hospitalar e infelizmente me deparei com a dura realidade da falta de humanização no cuidado para com paciente psiquiátrico e com uma série de violações de direitos humanos no sistema público de saúde mental da minha cidade. 

De posse dessas informações, quando retornei aos bancos da Academia Maranhense, desta vez na seara do direito, pude estudar a sentença do Caso Ximenes Lopes versus Brasil, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou nossa nação pela violação do direito à vida e à integridade pessoal da vítima. 

O senhor Damião Ximenes Lopes fora submetido a tratamento psiquiátrico em uma instituição credenciada do SUS, mas veio a óbito após sofrer torturas e maus-tratos na Casa de Repouso Guararapes. Assim, considero que o contato com o saber no âmbito da saúde aliado à possibilidade de combate por uma justiça social, impulsionou-me a abraçar essa luta em prol da garantia de dignidade humana à pessoa que padece de transtornos mentais.

 

2 – Você menciona que a depressão será a doença mais incapacitante do mundo até o ano 2030. Como isso influenciou sua pesquisa e sua compreensão da importância dos direitos humanos no contexto da saúde mental? 

R – Estima-se que ocorram atualmente mais de 700.000 suicídios por ano em todo o mundo e, só no primeiro ano da pandemia, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25%. 

É manifesto que o investimento em políticas de proteção à saúde mental é determinante para a superação da instabilidade psíquica mundial, pois, se o mundo estivesse de fato preparado para a pandemia, o aumento de casos não teria sido tão expressivo. 

Longe disso, como alertou a OMS, no ano de 2020, apenas 25% dos 171 países atenderam aos critérios do Plano de Ação Global para a Saúde Mental para integrar essa dimensão psíquica à atenção primária; apenas 51% dos 194 Estados Membros da OMS declararam que sua política ou plano de saúde mental estava em conformidade com os instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos, muito abaixo da meta de 80%. 

Compreendo que as estatísticas da OMS devem servir sempre como um alerta para a prevenção e como bússola para a adoção de novas estratégias de intervenção. Logo, se existe a possibilidade de trazer à tona uma discussão jurídica de cunho prospectivo, certamente os riscos serão minimizados. 

A pesquisa em direitos humanos no contexto psíquico deve enfatizar o dever do Estado de garantir a proteção e promoção do bem-estar físico, mental e social da coletividade, considerando a saúde mental como um direito fundamental de aspecto essencial para o desenvolvimento pessoal, comunitário e socioeconômico. 

 

3 – Ao longo de sua pesquisa, quais foram os principais desafios que você enfrentou ao tentar compreender e analisar a interseção entre direitos humanos e saúde mental?

R – Quando se fala em direitos humanos, devemos ter em mente a ideia de direitos e liberdades fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana. No âmbito da saúde mental, o mínimo existencial deve se refletir na garantia de acesso aos serviços de promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação. 

Nesta intersecção entre direitos humanos e saúde mental, identifiquei uma problemática ontológica a ser superada, então meu primeiro desafio foi tentar demonstrar que a pessoa que padece de transtorno mental tem o direito de viver, para além de sobreviver. O gozo de todos os direitos humanos a que faz jus deve permitir a existência do outro como ele é, com toda a sua história, marcas, dores e flores.

Essa dinâmica de reconhecimento humano, segundo a teoria do filósofo Axel Honneth, perpassa pelas esferas do amor, da solidariedade e do direito, em que o último deve ditar normas que possibilitem a coesão entre todas as três esferas. Trata-se de um trabalho conjunto que envolve não apenas a obrigação estatal de garantir o direito aos cuidados em saúde mental, mas igualmente o dever de saúde enquanto responsabilidade individual e coletiva.

 

4 – O livro explora a questão de se existe verdadeiramente um direito à saúde mental. Quais são os principais argumentos que você apresenta para abordar essa questão?

R – Ante a exígua literatura específica sobre a temática em nível mundial, explorei a obra do jurista Michel Bélanger, autor pioneiro no direito internacional à saúde, em busca da previsão legal do direito à saúde mental em tratados internacionais e legislações afins. 

Segundo o professor francês, o direito à saúde física e mental pode ser considerado como um direito econômico e social, por exemplo, com o artigo 12 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), e igualmente como um direito civil e político, por exemplo, com o artigo 6º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) através do direito à vida (interpretação extensiva). 

Não apenas as normas internacionais cogentes, mas igualmente os institutos de soft law corroboram a existência do direito à saúde mental como prerrogativa transcendental, de caráter global e aspecto fundamental (BÉLANGER, 2012). Um direito que diz respeito não apenas ao acesso aos cuidados em saúde mental, mas à qualidade do fornecimento dessa prestação de serviço, no sentido de que o paciente deve ser tratado com dignidade e seguir a terapêutica de forma incólume de toda e qualquer tentativa de violação de direitos a sua integridade física e psicológica. 

 

5 – Pode compartilhar alguns exemplos de como o direito internacional tem contribuído para a efetividade do direito à saúde mental ao nível global?

R – Acredito que não haja melhor exemplo que o Caso Ximenes Lopes versus Brasil, primeira condenação do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no ano de 2006; sentença igualmente pioneira em nível mundial no âmbito da saúde mental. 

A referida decisão condenatória adveio em consequência à negligência do país para com a morte de um paciente psiquiátrico após sofrer tortura e maus tratos no interior de um estabelecimento de saúde. 

Considero esse momento como um divisor de águas no contexto da proteção à pessoa que padece de transtorno mental, pois essa condenação contribuiu para a formação de uma jurisprudência protetora do direito humano à saúde mental, permitindo o salutar desenvolvimento e exercício da personalidade jurídica internacional quando do cometimento de graves violações de direitos humanos. Tal sentença representou um “cessar-fogo” com o passado brasileiro sombrio no que diz respeito à violação de direitos humanos em ambientes psiquiátricos. 

Na década de 60, mais de 60 mil pessoas foram mortas no manicômio chamado “Colônia” em Barbacena-MG. Infelizmente, a realidade do tratamento hospitalar em saúde mental ainda hoje é marcada pelo descaso, maus-tratos, abusos de todos os tipos e deficiência de formação profissional adequada. 

Logo, a existência de mecanismos jurídicos regionais de direitos humanos, tal qual o sistema interamericano, é determinante para a efetividade do direito à saúde mental, para além de sua promoção e proteção. 

Um outro exemplo de tutela internacional se consubstancia na própria Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), um marco histórico de garantia e promoção dos direitos humanos deste grupo vulnerável, funcionando como um espelho que reflete na codificação do direito interno estatal um conteúdo jurídico fecundo à participação social plena e efetiva da pessoa com deficiência psicossocial em condições de igualdade no gozo de direitos humanos.

 

6 – Quais são as principais mensagens ou conclusões que você espera que os leitores retirem do seu livro? Como você espera que ele contribua para a discussão e ação sobre saúde mental e direitos humanos?

R – Acredito que a principal mensagem seja o convite à abertura da sociedade a sua própria diversidade. O livro soa como um chamamento à luta contra a discriminação e o estigma em torno do transtorno mental, trazendo à luz o direito à saúde psíquica como prerrogativa de natureza global. 

Almejo que a obra se junte a tantos outros trabalhos significativos no âmbito da saúde mental para estimular a reflexão sobre a articulação de mecanismos jurídicos que intervêm nos níveis internacionais, regionais e internos a fim de garantir uma proteção completa pelo viés da (re)formulação de políticas públicas holísticas no mundo da educação, saúde, nutrição, trabalho, habitação, transporte, lazer, segurança, dentre outros aspectos. 

Desejo que o debate sobre a crise mundial de adoecimento mental desperte em todos um comportamento proativo no que tange à prevenção de transtornos de ordem psíquica tanto pelo engajamento individual como pelo familiar/ coletivo e que, manifestada a patologia, sejam denunciados toda e qualquer forma de violação de direitos humanos no âmbito institucional psiquiátrico.

 

7 – Quais são os próximos passos ou áreas de pesquisa que você acredita serem importantes para avançar ainda mais no entendimento e promoção dos direitos humanos no contexto da saúde mental? Você pretende continuar com a pesquisa e publicação na área?

R – Neste primeiro livro, a abordagem se concentrou na proteção contra violências físicas e psicológicas no âmbito das internações psiquiátricas, além do estabelecimento da saúde mental como uma prerrogativa de direito internacional.

Após ter contato com as leituras do sociólogo Erving Goffman, eu despertei para a pesquisa contra a violência do tipo moral contra a pessoa que padece de transtorno mental. 

Em outras palavras, a discussão se concentra sobre a realidade do pós-diagnóstico, sobre o processo de mortificação do “eu”, de despersonalização e de mutilação da personalidade pela atribuição de características, como as da invalidez, incapacidade e inutilidade (GOFFMAN, 1968) que corroboram para a invisibilidade da pessoa que padece de transtorno mental. 

Sendo assim, atualmente minha linha de pesquisa em nível de doutorado se concentra no aspecto da reinserção social deste grupo vulnerável numa abordagem comparativa do direito regional europeu e interamericano de proteção dos direitos humanos. Sem sombra de dúvidas, continuarei a escrever sobre um tema que me pulsa o coração.

 

8 – Em termos de publicação do livro e questões editoriais, como foi a experiência de publicar sua pesquisa como livro?

R – Acredito que minha timidez e apreensão nesta primeira publicação foram rapidamente dissipadas pelo brilhantismo da equipe da Editora Dialética, que me acompanhou pacientemente a todo instante, respondendo dúvidas e enviando sugestões quando me deparava frente a um obstáculo editorial. 

Logo, foi uma experiência agradável e sobretudo gratificante, não por uma jactância em torno do meu nome, mas porque a Editora Dialética me concedeu a oportunidade de dar voz aos que não têm voz para se defender.

 

Publique seu estudo como livro você também!

 

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