No especial “Vozes da Igualdade”, a Editora Dialética tem o prazer de apresentar uma entrevista com Mayara Amorim, autora e mestre em Direito pela PUC-Campinas. Esta conversa ilumina as contribuições significativas de Amorim no campo das políticas públicas antirracistas, um tema explorado em profundidade em seu livro recentemente lançado, “Políticas Públicas Antirracistas – análises sobre racismo estrutural e programas de transferência de renda”.
O livro não apenas aborda questões críticas sobre racismo estrutural e desigualdade socioeconômica racializada no Brasil, mas também propõe a ressignificação de políticas públicas, enfatizando a importância de focar em famílias chefiadas por mulheres negras.
Mayara compartilha insights de sua pesquisa interdisciplinar, que abrange sociologia, antropologia e economia, e discute como suas descobertas podem influenciar o desenvolvimento social e a luta contra o racismo no Brasil.
Acompanhe-nos nesta jornada de conhecimento e reflexão:
Como a sua experiência no Laboratório de Estudos Étnico-Raciais Quilombo Oxé influenciou sua percepção sobre a necessidade de políticas públicas antirracistas no Brasil?
R: O Laboratório de Estudos Étnico-Raciais Quilombo Oxé trata-se de um grupo de estudo vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a coordenação da Professora Dra. Eunice Aparecida de Jesus Prudente, Leticia Lé e André Cozer.
Nos estudos realizados, durante o período em que pude participar, debatemos grandes referências teóricas nacionais e internacionais, tais como: Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, a própria Professora Dra. Eunice Prudente com suas contribuições pioneiras no âmbito do direito e relações raciais, Jean Stefancic e Richard Delgado.
As perspectivas apontadas, as apresentações realizadas e os diálogos propostos contribuíram para construção, percepção e refinamento da minha pesquisa de dissertação. Mas, para além dos estudos, o Laboratório de Estudos Étnico-Raciais Quilombo Oxé é um lugar de acolhimento e de segurança, baseado no debate sério e que entrelaça teoria e prática.
Os grupos de estudos têm papéis fundamentais na condução e ajustes de toda pesquisa, por isso, agradeço outros grupos de pesquisas e seus integrantes, importantíssimos na minha trajetória, como: ‘‘Direito e Realidade Racial’’ e “Direito e Realidade Social”, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e o Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.
Em sua obra “Políticas Públicas Antirracistas”, você discute o racismo estrutural e programas de transferência de renda. Poderia compartilhar como esses programas podem ser estruturados para combater efetivamente o racismo?
R: Nesta obra de pesquisa de dissertação em Direito, sustenta-se como hipótese que o critério universalista adotado por programas de transferência direta de renda é insuficiente para a redução das desigualdades sociais, na medida em que ignora ou considera parcialmente a questão racial.
Pela forma como os programas de transferência de renda são direcionados atualmente, pode-se afirmar que esses mantêm o status quo dos “vencedores”, isto é, grupos privilegiados pela formação histórica colonial do Brasil, em detrimento dos “perdedores”: os negros. Na atual configuração do sistema econômico que produz e reproduz a pobreza, a desigualdade racial tem importante função.
No que tange especificamente às políticas públicas antirracistas, destacou-se a importância e o potencial contributivo do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) que realiza o cadastro socioeconômico da composição das unidades familiares destinatárias dos programas de transferência de renda.
Além disso, o uso metodológico da interseccionalidade para colocar em notoriedade os diversos eixos de subordinação que afetam os beneficiários, alinhado à gestão e execução das políticas públicas por meio da transversalidade e da intersetorialidade.
Como conselheira de Promoção da Igualdade Racial, quais avanços você observou nos últimos anos e quais são os maiores desafios que a população negra ainda enfrenta ?
R: No ano de 2018 , à época como conselheira municipal de promoção da igualdade racial (COMPIR), pude compreender a importância de se pensar as diversas perspectivas das políticas públicas, por meio de reuniões, intervenções escolares, diálogos com bases populares e participações em delegações.
Alguns avanços são notórios para a colocação dos efeitos do racismo na sociedade brasileira, tais como inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena; instituição do Estatuto da Igualdade Racial; reserva de vagas para ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio; criação do programa especial para o acesso às instituições federais de educação superior e de ensino técnico de nível médio de estudantes pretos, pardos, indígenas e quilombolas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio ou fundamental em escola pública, dentre outros.
Entretanto, alguns problemas persistem: a empregabilidade, no âmbito formal, da população negra; diferença salarial; o acesso e permanência postos de trabalhos de liderança e remuneração; desigualdades de acesso aos serviços públicos etc.
O Dia da Consciência Negra é um momento de reflexão e luta. Na sua visão, quais são as principais reflexões que a sociedade brasileira deveria fazer nesta data?
R: As discussões e práticas antirracistas devem ser adotadas durante o ano todo. Notoriamente, trata-se de uma data importante (e política) para reforçar as ações antirracistas realizadas cotidianamente.
Neste contexto, torna-se primordial pensarmos sobre privilégios. O privilégio pode ser definido como uma “vantagem que alguém possui por fazer parte de um grupo social majoritário, não havendo nenhuma ligação necessária entre a posição social que o sujeito ocupa e a sua competência pessoal” (MOREIRA, 2020, p. 482).
A autora Maria Aparecida Bento apresenta a ideia de pactos narcísicos e a branquitude, caracterizados por acordos tácitos e não formalizados. Nesses acordos, as pessoas brancas se beneficiam em razão de estruturas de poder e dominação, independentemente de se considerarem privilegiadas, alinhando-se à lógica meritocrática (BENTO, 2022, p. 77). Por isso, deve-se ter um debate sério, atento e com ações.
Quais práticas antirracistas você considera mais eficazes para serem adotadas por instituições educacionais para promover a igualdade racial?
R: No âmbito educacional, cito algumas referências que contribuem para o debate, tais como: Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes, Barbara Carine, especialmente com a obra “Como ser um educador antirracista: para familiares e professores” (2023).
Pode nos dar exemplos de como as políticas públicas podem ser utilizadas para desmantelar o racismo estrutural em diferentes setores da sociedade?
R: São alguns exemplos em curso para o combate do racismo no país, no âmbito federal: Programa Nacional de Ações Afirmativas; Programa de Enfrentamento do Racismo Religioso e Redução da Violência e Discriminação contra Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Povos de Terreiros no Brasil; Plano Juventude Negra Viva; Programa Mulher Cidadã – cidadania fiscal para mulheres etc.
Qual mensagem você gostaria de passar para os leitores no Dia da Consciência Negra, especialmente para aqueles que buscam ser aliados na luta antirracista?
R: A prática antirracista é uma forma de oposição ao racismo. Por isso, requer conhecimentos teóricos e práticos. O racismo hierarquiza corpos, razão pela qual está intimamente relacionado com o poder.
Logo, requer a implicação de todas as pessoas sobre a centralidade do debate e seus efeitos, perpassando a esfera pública e privada. Neste sentido, há uma convocação para o agir em combate ao racismo.
Como escreveu Maya Angelou:
Ainda assim eu me levanto
“Abandonando as noites de terror e medo
Eu me levanto
Para um amanhecer maravilhosamente claro
Eu me levanto
Trazendo as dádivas que meus ancestrais me deram,
Eu sou o sonho e a esperança dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto”
(ANGELOU, 2020, p. 176).
Texto escrito por Tais Terra